A reunião em Bari para discutir ações concretas para formular políticas de proteção aos imigrantes do Leste Europeu, que chegavam em levas cada vez maiores à União Europeia, terminara sem avanços significativos. Sempre frustrante perceber os interesses econômicos se sobreporem às questões humanitárias. No entanto, resolvi cumprir o programa que havia estabelecido ainda antes de viajar: aproveitar a proximidade e conhecer Otranto. Confesso, constrangido, que meu interesse era visitar o famoso castelo, local escolhido pelo romancista inglês Horace Walpole para desfilar as trágicas e absurdas histórias da maldição que recaiu sobre os descendentes do príncipe Manfredo, livro que incendiou minhas fantasias de adolescente solitário e melancólico.
Assim, no meio da manhã do sábado ensolarado, tomei um trem até Lecce e outro de Lecce a Maglie, onde embarquei, com um espalhafatoso grupo de turistas norte-americanos, numa litorina que nos deixou na pequena estação de Otranto, a cidade branca espreguiçando-se lânguida junto ao azulíssimo canal, onde as águas do mar Adriático abraçam as águas do mar Jônico. Desci pelas ruas estreitas diretamente para as amuradas do castelo, a respiração um tanto quanto alterada pela emoção durante anos resguardada. E foi uma decepção. O castelo encontrava-se lá, tal e qual eu imaginara, mas evidentemente despido da atmosfera lúgubre, fantasmas não surgiam de repente dos cantos escuros, não se ouviam gritos desesperados ou ruídos de correntes se arrastando. Trata-se de um belo castelo, outrora impávido defensor dos habitantes, mas apenas um castelo… Uma hora depois, achava-me num restaurante na via Immacolata comendo linguine ai frutti di mare, acompanhado por duas taças de Greco del Sannio.
A excelente refeição, e talvez principalmente o arrebatamento provocado pela alma do vinho, compensaram meu desencanto e decidi caminhar ao léu, melhor maneira de nos surpreender quando em terra estranha. Bastaram, entretanto, alguns passos e me vi em frente à catedral de Santa Maria Annuziata, uma igreja do século XI, cujo piso é formado por inacreditável mosaico do século XII representando os signos do zodíaco, algo inusitado para um templo católico. Ali, demorei-me, extasiado com os afrescos bizantinos e com a capela dedicada aos mártires de Otranto, assassinados no século XV, quando da tomada da cidade pelos turcos. Ao sair, enlevado por tanta beleza, senti necessidade de beber algo, a temperatura seguramente passava dos trinta graus.
Entrei distraído no Caffè degli Amici, no corso Garibaldi, e de imediato uma amável voz masculina irrompeu do interior penumbroso,
Buongiorno, amico! Respondi ao cumprimento, mencionei o calor e perguntei o que poderia me oferecer para matar a sede e refrescar a garganta. Ele sugeriu
granata spremuta, que aceitei sem pestanejar, e indicou uma mesa. Enquanto aguardava o suco de romã, notei, por detrás da caixa-registradora, uma pequena bandeira do Brasil, que, embora emoldurada e envidraçada, mostrava claros sinais de deterioramento. Fiquei tão surpreso que, não me contendo, desloquei-me até o balcão e, apontando para o quadro na parede, indaguei: Desculpe, mas aquela bandeira do Brasil…
O homem, que devia estar por volta dos sessenta anos, cabelos crespos agrisalhados, pele moreno-escura, olhos pretos, um tipo não muito diferente dos demais habitantes daquela parte da Itália, sorriu e disse: Ora, sou brasileiro,
capisci?! Também eu, falei, entusiasmado, como raramente me sinto, Dório, meu nome, podemos conversar em português? Apertando minha mão, ele disse, em português, Sebastiano, muito prazer! E, na sequência, em italiano, Infelizmente, eu não sei mais falar português, antes eu sabia um pouco, mas, como não tinha com quem praticar, esqueci… Só recordo palavras soltas e uma ou outra frase, obrigado, até amanhã, sossega leão… Mas o senhor não é brasileiro?!, interroguei, e ele continuou, Não, sou italiano, cresci aqui em Otranto… Meu pai é que era brasileiro… Da Bahia… Desculpe a indiscrição, mas como ele veio parar em Otranto?, indaguei. Ah, uma longa história, ele suspirou, e, talvez porque não havia, naquele momento, mais ninguém no lugar, completou, Já passou tanto tempo, só os mais velhos ainda lembram do meu pai, ele se tornou cidadão conhecido e estimado, mas no começo enfrentou muito preconceito, negro, estrangeiro, não falava italiano… Enfim, uma história comprida, que remonta à época da guerra…
Dei a entender que não me importava de ouvi-la e Sebastiano, satisfeito, contou-a.
– Natalício Silvino, meu pai, era um homem bonito, elegante, simpático. Tinha imenso prazer em conversar, e, embora até o fim da vida falasse mal o italiano, falava melhor o dialeto, todos os que o ouviam ficavam encantados com seus modos agradáveis e envolventes. Chamava todo mundo de
amico, tanto que, com o tempo, trocou o nome do
caffè, adquirido como Il Piccolo Caffè di Luigi, para Caffè degli Amici, porque realmente considerava todos os frequentadores amigos. No entanto, sobre alguns assuntos recusava-se a discutir, política, futebol e, mais que tudo, detalhes do seu passado. O pouco que sei deve-se à memória da minha mãe, que graças a Deus ainda vive, a quem ele confiou uma coisa e outra. Só para ter uma ideia, meu nome é Sebastiano para homenagear o meu avô, mas essa é a única informação que tenho a respeito da família do meu pai, além de que eram camponeses muito pobres num lugar chamado Sant’Anna
[1].
Ebbene, aos vinte anos ele foi convocado para a guerra. Depois de receber instruções militares básicas na Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, quando, aliás, aprendeu a dirigir, desembarcou em Nápoles, em julho de mil novecentos e quarenta e quatro. Meu pai foi designado para motorista de um jipe, que apelidaram de Chiquinho
[2], que, além de servir para deslocamentos de um oficial, utilizavam para comunicação entre a linha de frente e a retaguarda. Ele esteve presente nos primeiros combates dos pracinhas
[3] – é assim que se diz, não? – perto de Lucca, onde também sofreram as primeiras baixas durante um contra-ataque dos nazistas. Depois, seguiu transferido para o
front perto de Pistoia. Minha mãe lembra do meu pai reclamando do inverno, quase vinte graus abaixo de zero, dormia numa espécie de cama-saco em cima da neve mesmo, embrulhava os pés com feno dentro da bota para evitar que gangrenassem. Ele desenvolveu verdadeira ojeriza ao frio, só não se agasalhava no verão, que aqui, como o senhor pode sentir, é brutal. Nesse local onde estavam entrincheirados havia uma ponte – de um lado os aliados, do outro, no alto da montanha, os alemães, e o objetivo era desalojá-los. Em dezembro, após uma batalha violenta, em que as tropas brasileiras sofreram muitas baixas, meu pai não aguentou. O frio extremo, o barulho da artilharia, os gritos dos feridos pelos morteiros, os cadáveres amontoados, tudo isso parece ter contribuído para que meu pai sofresse um colapso nervoso. Então, ele decidiu fugir. Se o senhor conhecesse meu pai, homem pacífico e cumpridor das leis, não acreditaria que fosse capaz de tamanha imprudência. Sabia que corria risco de ser preso e submetido à corte marcial, mas o estado de pânico em que se encontrava ofuscava o temor às possíveis consequências da retirada. De madrugada, pegou o jipe com o tanque cheio, e mais dois galões de gasolina escondidos sob uma lona, e rumou para o sul, na esperança de alcançar Nápoles e achar alguém disposto a ajudá-lo a regressar ao Brasil. Assim, sem mapa, sem bússola, contando apenas com a intuição, meu pai veio descendo, sempre evitando as estradas principais. Minha mãe comentava que ele ficou horrorizado com o que viu, campos calcinados, cidades e vilarejos destruídos, crianças revirando lixo em busca de comida, mulheres oferecendo-se em troca de barras de chocolate, velhos e velhas abrigando-se atrás de paredes em ruínas de casas sem teto. Sem perceber, afundando em vias enlameadas e sob uma chuva incessante, meu pai desviou-se mais e mais para leste. Até que, num determinado momento, o combustível chegou ao fim e ele teve que continuar a jornada a pé. Na antevéspera do Natal, Cataldo Mazzotta, que viria a ser meu avô, encontrou meu pai caído, meio inconsciente, no leito da estrada comunal, perto de Serrano, magro e imundo, e, embora receoso, afinal tratava-se de um
forister, um forasteiro, vestido com um uniforme desconhecido, e ainda por cima
una pèrsone negre, resolveu socorrê-lo. Agasalhou-o em sacos de aniagem, deu-lhe vinho para beber, azeitonas para comer, enfiou-o na boleia do caminhãozinho Fiat e descarregou-o na
fagna[4] da casa onde morava, em Cannole. Ali, permaneceu por alguns dias, aos cuidados daquela que se tornou minha mãe, Caterina, que, confessava, na época morria de medo do meu pai, entregava o prato fumegante de sopa rala – única refeição, comum a todos – e saía correndo.
Nònne Cataldo era um homem amargo, mas generoso. Havia perdido os dois filhos-homens para a guerra – Nicola, durante a invasão do Egito, em dezembro de mil novecentos e quarenta, e Donato, na Grécia, um ano depois – e a esposa, a
nonna Filomena, morrera naquele outono, de desgosto. Quando recuperou a saúde, meu pai passou a auxiliar o
nònne na labuta, que consistia em comprar o pouco azeite ainda produzido nos campos adjacentes e tentar revender em Otranto. Ele nunca questionou meu pai sobre o passado – aceitou-o como uma
apparizzióne, algo inexplicável que vinha, de certa maneira, ampará-lo na velhice, substituindo seus dois pranteados filhos. Assim, nem quando minha mãe, que, sem perceber, pouco a pouco apaixonou-se por meu pai, comunicou que estava grávida, ele se abalou. Aqueles eram tempos difíceis, estranhos, e, pragmático, entendeu que minha mãe dificilmente arranjaria marido melhor, inclusive porque os homens ou estavam mortos, ou aleijados, ou loucos, ou desaparecidos. Além do que, a simples presença do meu pai ajudava no negócio, pois muitos o procuravam atraídos pelo ‘exotismo’ que ele representava. Meu
nònne aborreceu-se apenas quando meu pai esquivou-se de casar oficialmente com minha mãe, por não ter documentos, sonhava entrar orgulhoso na igreja de Maria Santissima Madre di Dio de braços dados com a filha, exibindo-se para a
comuna. Mas, logo conformou-se, naquela época o que mais havia eram mães solteiras, a miséria sobrepujava qualquer possibilidade de julgamento moral. E compensou ainda mais sua frustração o meu nascimento, em catorze de setembro de mil novecentos e quarenta e seis, porque, em meio à carência de tudo, ele conseguiu dar uma pequena festa para marcar a cerimônia de meu batizado.
Ebbene, para não estender mais essa história, que já vai longa, paulatinamente a vida no pós-guerra ia se normalizando, mas meu
nònne, muito teimoso, não admitia que ninguém se intrometesse nos rumos de suas atividades, não conseguia adaptar-se aos novos tempos. Além disso, sua saúde frágil, fora gaseado na Grande Guerra, piorara muito devido à falta de comida, agasalho e remédios. Percebendo isso, e preocupado em fixar de vez meu pai na terra – no fundo, ainda temia que ele quisesse regressar ao Brasil –, adquiriu este café, que permanecia fechado desde a chegada dos aliados à região, deu de presente à minha mãe, e morreu menos de um ano depois. No começo, poucos entravam aqui, por preconceito mesmo. Meu pai postava-se à porta e cumprimentava, em dialeto, todas as pessoas que passavam,
Bunj’orn, sinnò! Bunj’orn, signore! Bunj’orn, signurinna! Bunj’orn, amiche! Devagar, carismático, conquistou toda a vizinhança. Primeiro, vieram os
raghe, os jovens, depois, os
vecchjaru, os velhos. Cresci entre essas mesas e cadeiras, mimado pelos fregueses, auxiliando meu pai, que, infelizmente, partiu cedo, aos cinquenta e dois anos, infarto fulminante. Assumi o negócio, casei, minha esposa se chama Simona, enfermeira na Misericordia, e temos um casal de filhos, Laura e Cataldo, homenagem ao
nonnè – Laura vive em Roma, trabalha em produção de cinema de publicidade, e Cataldo possui oficina mecânica em Uggiano La Chiesa.
Ebbene, aquela bandeira do Brasil encontrei no fundo de um baú que guardava coisas do meu pai na casa do
nònne, em Cannole. Emoldurei e pendurei aqui, forma de sempre lembrar dele, um homem admirável... Acredita que meu pai tinha tanto medo de ser apanhado que nunca saiu de Otranto? Segundo minha mãe, ele dizia que tudo que importava para ele encontrava-se aqui, família, amigos. Nunca entrou em contato com ninguém do Brasil – devem achar que ele morreu no campo de batalha… Melhor assim, o senhor não acha?
Respondi que sim, pedi outra
granatra spremutta, e me sentei, observando os
vecchjaru que, cumprimentando Sebastiano com animação, entravam em grupo para tomar café e conversar fiado naquele fim de tarde de verão.
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[1] Há, pelo menos, três cidades com esse nome na Bahia: Santana, Feira de Santana e Riacho de Santana.
[2] Creio ser esse o apelido do jipe, que Sebastiano pronunciou Scicchigno ou algo parecido.
[3] O quer ela falou era ininteligível, mas, com certeza, queria dizer pracinha.
[4] Palavra do dialeto salentino, que, pelo contexto, creio tratar-se de um celeiro ou paiol.